"Tudo é FC"
Ora bem. Tal como fiz com o comentário de Jorge P. Pires, volto a ir buscar aos comentários um texto a que tenciono responder em breve e que me parece óptimo para nos debruçarmos sobre ele. O comentário é o do Lúcio Manfredi em que ele defende que tudo é FC, retomando alguns argumentos do Octávio Aragão e acrescentando argumentos seus. Ele aqui fica:
Deixa eu me meter nessa discussão um pouco tardiamente, pra trazer os meus dois cents de confusão. ;-)
O problema todo, como sempre, resulta do diacho das definições. Dá pra perceber pelas mensagens que as pessoas têm diferentes concepções do que é ficção científica e, de fato, a gente encontra esse mesmo problema na crítica especializada e até entre os autores. As pessoas escrevem ficção científica, lêem ficção científica, analisam ficção científica, mas não têm uma definição rigorosa do que *é* ficção científica. Para uns, fc é qualquer obra que provoque o sense of wonder, para outros ela tem que estar estribada em uma rigorosa extrapolação científica, e assim por diante. E é claro que cada uma dessas definições traça uma fronteira diferente entre o que é ou não fc. Daí que, se a gente não levar em conta essa questão da definição, vamos continuar discutindo até o inferno congelar, porque estaremos falando de coisas diferentes sob o mesmo nome.
Em vez de trazer a minha própria definição de fc pra arena - que eu a tenho, evidentemente, mas que só contribuiria pra embolar ainda mais o meio de campo -, deixa eu tentar colar na própria expressão, ao pé da letra, com uma visada fundamentalista mesmo.
"Ficção" em ficção científica não apresenta grandes problemas. Todo mundo sabe o que é ficção. Seria mais complicado se a gente quisesse determinar o que *não* é ficção, ou seja, o que é a realidade, mas aí entraríamos na seara da metafísica, que muito me interessa, mas que nos levaria bem longe dessa discussão. Só pra não passar batido pela questão, deixo uma frase do Daniel Boorstin no prefácio à primeira edição de *The Image*: "I do not know what 'reality' is. But somehow I do know an illusion when I see one."
Agora, o "científica". Admitidamente, a expressão afirma que ficção científica é uma forma de ficção que tem relação com a ciência. Que tipo de relação, a expressão não diz, e eu me propus a ficar com o pé da letra. Portanto, se é ficção e tem alguma coisa a ver com a ciência, então é ficção científica.
Agora bem, *qual* ciência? Será apenas o campo das ciências físicas e matemáticas? A fc sempre teve uma quedinha por elas, desde Júlio Verne, e na cabeça das pessoas, sim, as ciências com que a fc lida são a física, a química, a matemática e, vá lá, a biologia. Mas, quem é in do gênero sabe que isso configura apenas um subgênero, a chamada fc hard. Desde o movimento new wave que a fc lida com outras ciências menos exatas, como a psicologia, a sociologia, a lingüistica, e mesmo antes: a fc soft não esperou pelos nu wavistas para nascer, ela remonta pelo menos às especulações históricas e sociológicas de H. G. Wells. Logo, à falta de maiores qualificativos na expressão, podemos presumir que a ficção científica é a ficção que tem qualquer tipo de relação com qualquer tipo de ciência. Onde é que isso nos traz? Vejamos.
A psicologia é uma ciência e, de fato, é uma das ciências favoritas do pessoal da nu wave. Conseqüentemente, o romance psicológico é ficção científica, o que inclui o grosso da ficção literária do século XIX até os dias de hoje, de Flaubert a Virginia Woolf.
A sociologia é uma ciência e, assim, o romance social é ficção científica. De novo, isso inclui boa parte da ficção literária tradicional, de Balzac a Jorge Amado e, sim, José Saramago, e não só nas obras dele que mais se identificam com o repertório de imagens do gênero.
A mitologia - refiro-me ao estudo das estruturas mitológicas, e não à coleção de lendas - é um subramo da antropologia e, de fato, um dos grandes nomes da antropologia do século XX, Lévi-Strauss, construiu toda sua carreira em cima da análise estrutural dos mitos. Pois bem, se a mitologia é uma ciência, não vejo porque excluir da fc as obras inspiradas na mitologia - refiro-me, claro, ao f de f&fc, inclusive Tolkien e seus imitadores.
O estudo científico das religiões começou no século XIX e, no início do século passado, configurou-se em uma verdadeira disciplina, a Religionswissenschaft, que engloba a história das religiões, a religião comparada e a fenomenologia das religiões. O que torna as obras religiosas - sejam as obras artísticas de inspiração religiosa, sejam os próprios textos religiosos - em um subgênero da ficção científica.
De Moby Dick, que parece ser um exemplo privilegiado nesta discussão, nem tem muito que falar: o romance entremeia a estrutura ficcional simbólica com verdadeiros tratados sobre a biologia marinha e o estudo sociológico da comunidade fechada de marinheiros em alto-mar, bem como uma análise psicológica sutil e aprofundada dos personagens. Quer dizer, não precisa de muita boa vontade pra reconhecer que, sim, Moby Dick é ficção científica.
O romance experimental também não escapa ao gênero, tanto quando se debruça sobre a metalinguagem - afinal, o romance metalingüístico é uma fusão de literatura e crítica literária, e a crítica literária é uma ciência (não uma ciência exata, por certo, mas a expressão não diz "ficção científica exata") - mas também porque muitas das estruturas narrativas do romance experimental - e aqui você pode incluir tanto o *Em Busca do Tempo Perdido* de Proust quanto *O Quarteto de Alexandria* do Durrell, bem como uma caralhada de obras modernistas e pós-modernistas - se inspiraram explícita e assumidamente na teoria da relatividade de Einstein.
Diante disso tudo, só me resta concordar com o tovarisch Octavio: tudo é ficção científica, e os diferentes gêneros e estilos são apenas subcampos dentro do conjunto mais vasto da ficção científica. Dentro desse conjunto, cada um elege as obras que lhe falam mais pessoalmente ao gosto e determina que "estes são *a minha* ficção científica". Daí a multiplicidade de definições que, como mais de um crítico notou, mesmo dentro do que o senso comum do fandom reconhece como fc, sempre incluem algumas obras para excluir outras. Porque tudo é ficção científica, mas são muitas as ficções científicas dentro da ficção científica.
Abs.
L.
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