Na Trilha de Möbius

Notícias e reflexões sobre ficção científica, fantástico e literaturas alternativas.

terça-feira, julho 15, 2003

Dick, FC e muito mais II - A Resposta

Artigo puxa artigo e dos artigos se gera o entendimento e a compreensão. A resposta de Jorge Pires ao meu post é clara e dá para compreender melhor os motivos por trás daquela frase infeliz no seu artigo (em geral bastante bom, diga-se de passagem) sobre as edições de Dick da Presença. Desta minha resposta espero que saia uma clarificação de uma série de conceitos que me parece terem ficado confusamente definidos ou não definidos de todo. Mas vamos por partes.

Proclamar que a ficção científica começa a ser encarada com algum respeito em Portugal só é encarado como disparate se se achar que quem o proclama o faz gratuitamente e não conhece o passado. Não é o caso, Jorge. Eu sei perfeitamente que estas edições da Presença são novas edições de obras já publicadas em Portugal por outras editoras, principalmente pela Livros do Brasil (à excepção da de Relatório Minoritário, que estava inédito, permanecendo inéditos todos os contos que acompanhavam este na edição original em livro). Eu tenho e li esses livros, conheço-os muito bem. Também sei, no entanto, que essas edições foram feitas em formato de bolso, com traduções frequentemente pavorosas, edições mal cuidadas e totalmente ignoradas pela imprensa da época e pelas pessoas ligadas à literatura. É que respeito não é igual a popularidade. A Argonauta, na sua época de ouro (que é anterior à edição de Dick, que se dá principalmente nos anos 80 quando a colecção estava já em clara decadência), conseguiu reunir um número considerável de leitores fiéis, que a acompanharam, cada vez mais desgostosos, até aos anos 80 e muitos deles a abandonaram nos anos 90, quando a qualidade dos livros bateu no fundo por completo (há já alguns anos que está a recuperar). Aliás, tal como a colecção irmã, a Vampiro. Mas uma e outra nunca foram tratadas com respeito, sendo desde sempre consideradas literaturas de segunda ou terceira categoria pelo simples facto de se assumirem como géneros. O policial, entretanto, conseguiu sair desse gueto, mas a FC ainda não. Agora parece dar alguns sinais de que isso possa vir a acontecer. Parece. Possa. O condicional aqui implícito vem do conhecimento do passado e de ter perfeita consciência de que noutros tempos também houve sinais de esperança que se acabaram por gorar. De facto, conhecer o passado é importante para falar com propriedade acerca do presente.

O problema da guetização da FC também tem muito a ver com a própria expressão «ficção científica». Ela levanta grandes alergias nos sectores literários portugueses (e não só), quem sabe se por alergia às ciências, quem sabe se pela dicotomia absurda que se estabeleceu nos últimos séculos na cultura ocidental entre o científico e o artístico, que são encarados por tanta gente como mutuamente exclusivos. Aquilo que as pessoas não parecem compreender é que «ficção científica» é apenas uma designação que não deve ser tomada à letra. Embora haja bastantes problemas em definir concretamente o que é a FC (e aqui pode encontrar uma boa colecção de definições, algumas de alguns dos nomes maiores do género a nível internacional), em parte porque assim que alguém surge com uma definição que parece resultar, imediatamente outro alguém trata de produzir um texto de FC que quebre as regras, todos sabemos perfeitamente o que a FC não é. FC não é ciência. A palavra-chave está no início: ficção.

E que é a ficção científica? Ainda que seja difícil de definir concretamente, há alguns traços que quando surgem levam o leitor que tenha alguma experiência no género a dizer: “Ah! Isto é FC!”

A FC necessita de insólito, de um fenómeno exterior à experiência comummente considerada possível no momento em que a obra é produzida. A maneira mais típica de conseguir esse insólito é colocar a acção no futuro e/ou em planetas distantes (o que leva a outras das mais comuns interpretações erradas de FC: a de que FC é literatura futurista e/ou sobre o espaço), mas há FC que se desenrola no presente e no passado da Terra e não é menos FC por causa disso. Dir-me-ão: o fantástico, o realismo mágico, o surrealismo, etc. também são movidos a insólito. É verdade, e é por esse motivo que muita gente (eu incluído) integra todas essas formas literárias no grande grupo da literatura fantástica. Ou seja, o que distingue a FC tem de ser mais do que o insólito. Tem de haver outra coisa.

E a segunda coisa que distingue a FC é a abordagem que é feita ao insólito. Não pode ser mágica – o que exclui imediatamente a fantasia e o realismo mágico – e tem de ser feita com habilidade suficiente para que todo aquele mundo pareça ser possível, de um modo compatível com a filosofia materialista dominante nos últimos dois séculos. Numa certa medida, escrever FC é a arte de fazer parecer possível o impossível, evitando no caminho as armadilhas do sobrenatural e do extra-natural. E é daí que lhe vem o nome de “científica”, que foi, é verdade, criado pela indústria. O que não implica qualquer fantasmagoria naquilo que distingue a FC da demais literatura. São características concretas, objectivas e verificáveis e que determinam o modo como a obra de arte se constrói. Em pintura, pinta-se de uma forma a acrílico e de outra forma diferente a óleo. Na literatura, o modo de escrever FC é também diferente (objectivamente diferente) do modo de escrever outros géneros.

Dick cumpre escrupulosamente estes parâmetros. Tal como os cumprem, por exemplo, obras como 1984 ou Admirável Mundo Novo, frequentemente alvo de frases como “não é FC – é crítica social”, como se uma coisa fosse incompatível com a outra. Tal como quase os cumpre o romance de Saramago Ensaio Sobre a Cegueira, que só é impedido de ser FC – e muito boa FC – pela cura milagrosa que acontece no final, e que mesmo assim se processa de uma forma bastante credível em termos de desenvolvimento das epidemias.

Quer isto dizer que não há FC que seja mesmo científica? Não. Há obras que juntam ao objectivo principal de contar boas histórias intenções didácticas de apresentação de ideias científicas especulativas. Há outras que vão mesmo mais além, pondo em primeiro lugar o didactismo e não se preocupando muito com a história (o que resulta com frequência em livros quase ilegíveis para o comum dos mortais... e numa má propaganda para o género). Mas essa é só uma parte da FC, conhecida geralmente como hard SF, de modo algum toda a FC.

Em todo o caso, diz-se com frequência que a esmagadora maiora da FC não passa de lixo. É verdade. Theodore Sturgeon, outro nome maior do género, ainda por descobrir pela maioria, disse uma vez que “ninety percent of SF is crud” , mas acrescentou “but that’s because ninety percent of everything is crud” . Verdade pura e cristalina. A qualidade na literatura, como em todas as obras de arte, dispõe-se em pirâmide, com um número reduzido de obras-primas no topo e uma massa imensa de dejectos no fundo, curiosamente a sustentar toda a pirâmide. E na FC, como parte da literatura que é (ou parte do cinema, ou parte da BD, etc.), acontece precisamente o mesmo. Isso é perfeitamente natural, faz parte das leis da vida. O que não é natural e só revela um certo grau de tacanhez e preconceito é que se pense que uma obra literária, só por passar a ser reconhecida como parte do reduzido grupo das obras de qualidade do topo da pirâmide, deixe necessariamente de fazer parte da subpirâmide das obras de FC. É contra esta atitude tacanha que nós, os que gostamos do género, nos rebelamos continuamente, chegando às vezes a assumir atitudes disparatadas de exagero de sinal contrário. Há quem diga que só a FC pode ser boa literatura, por exemplo. Não é o meu caso. Eu, e a maioria das pessoas ligadas ao género, não digo que a FC é a única forma de abordar certos assuntos ou de obter certas respostas. Digo que é uma das formas possíveis, com um conjunto de potencialidades muito próprias devidas às suas características específicas enquanto género literário. A FC, aliás, não costuma dar respostas. É perita, isso sim, em colocar perguntas, muitas vezes perguntas que não têm resposta, e em traçar cenários alternativos, possíveis ou eventuais. Coisas, já agora, com que uma boa parte da literatura mainstream pouco se preocupa, absorvida que está com o passado ou com os recônditos mais inacessíveis de uma alma humana completamente separada do ambiente que a rodeia. Sem surpresa, noventa por cento disso também é lixo.

E sim, a FC é um imenso comentário multifacetado à nossa espécie e à nossa sociedade. Não o único, mas um deles. Só seria bom que mais gente se aprestasse a descobri-lo. De preferência, sem ideias preconcebidas.