“Não é bem ficção científica, mas sim...”
No último número do suplemento Leituras, do Público, uma página é dedicada à ficção científica, através de um artigo de Jorge P. Pires acerca das recentes edições de livros de Philip K. Dick, pela Editorial Presença, e de uma opinião de Desidério Murcho sobre a trilogia de Eden, de Harry Harrison (Nota: Estes links deverão tornar-se inválidos em breve).
É um bom sinal. Significa, entre outras coisas, que a ficção científica começa a ser encarada com algum respeito em Portugal, pelo menos por parte de alguma imprensa e de algumas editoras, o que aproxima o nosso país do que acontece em França ou em vários países do Leste europeu, onde a FC tem uma força com que nós, por cá, só podemos sonhar.
Mas os velhos hábitos custam a morrer, e as velhas imagens permanecem, como fantasmas, a pairar algures entre o pensamento consciente e a zona onde vivem os reflexos.
E Jorge Pires cai nos velhos hábitos quando diz que “nos livros [de Dick], as narrativas propostas dão-se a conhecer menos como «ficções científicas» e mais como comentários à nossa espécie e à nossa sociedade”.
Amigo Jorge: toda a ficção científica é um imenso comentário multifacetado à nossa espécie e à nossa sociedade. Não há uma única obra de ficção científica que não tenha como origem e objecto aquilo que somos e o modo como interagimos uns com os outros. Isto pode ser feito de uma forma mais habilidosa ou mais desastrada, mas toda a FC pode ser comparada a um velho cometa em órbita elíptica alongada, que parte de nós, voa até aos confins mais inacessíveis do universo e regressa ao ponto de partida, pontual e inevitavelmente.
Mesmo quando a FC parece à primeira vista não ter nada a ver connosco, mesmo quando se decompõe no fogo de artifício artificial dos efeitos especiais, mesmo quando tem personagens tão bizarros como as três espécies inteligentes que povoam Jem ou, para os que nunca tiveram o bom senso de ler este livro extraordinário de Frederik Pohl e preferiram perder tempo com o Verhoeven, até os aranhiços de Starship Troopers, é o homem que é a medida de toda a FC, e é o ponto de vista humano que se analisa ao microscópio da ficção científica.
Isto é assim principalmente quando a ficção científica nos chega através dos livros. Mas até na FC que vem de Hollywood ou é enlatada em séries de televisão de fraca qualidade, é a nossa espécie e as nossas relações sociais que estão em causa. Só para deixar um exemplo claro, nada é mais omnipresente em toda a FC, desde a mais complexa à mais indigente, do que a exploração do modo como o Homo sapiens reage ao desconhecido. E poucas coisas são mais humanas do que o confronto com o desconhecido. Mas este é apenas um exemplo de um aspecto do que somos que é tratado até à exaustão na FC. Muitos outros existem. E a realidade é que a FC já se debruçou sobre tudo.
É tempo, portanto, que se compreenda de uma vez por todas que olhar para a FC como “histórias sobre luzes no céu” é a maneira mais simplista e mais errada possível de encarar o género. A FC será, isso sim, “histórias sobre como os humanos reagem a luzes no céu”. Os livros de Dick são, portanto, ficção científica. Não uma aparência de ficção científica, mas FC até às camadas mais profundas da sua natureza.
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