Na Trilha de Möbius

Notícias e reflexões sobre ficção científica, fantástico e literaturas alternativas.

domingo, junho 29, 2003

Moinhos de vento literários, e os D. Quixotes de papel

(Luís Filipe Silva)

São muitas as capas de um livro, e se por vezes temos a sensatez de não o julgarmos pela que lhe é imediatamente exterior, outras são menos óbvias e podem conduzir ao engano. É assim Debaixo da Pele, o primeiro romance de Michael Faber: uma promessa que não se chega a cumprir. 

 

Escrever ficção científica tornou-se chique. É a conclusão a assumir perante a onda recente de romances de tonalidade ligeiramente fantástica cujos enredos se desenvolvem numa zona cinzenta entre a realidade e o possível.

Identificá-los é relativamente fácil, embora não se encontrem atribuídos a um determinado movimento literário: são obras que reconhecem e fazem uso da complexidade dos tempos modernos, que apresentam uma maturidade urbana na qual a identidade do humano se confunde com a identidade da máquina (em sentido lato). Diferenciam-se da ficção científica tradicional porque se aproximam da tradição humanista, movimentando-se menos à vontade no território do desconhecido – preocupam-se primeiramente em visitar o espaco interior das personagens e pintar frescos de crescimento ou declínio espiritual.

Imitadores destilados de um imaginário mais puro? Ou simplesmente produto derivados de um epifenómeno maior, que pode ser, afinal, este mundo de fantasia em que vivemos, de comunicações globais, remédios que atrasam a morte e vôos em gigantescos pássaros de metal sobre continentes – um mundo ao qual, de certa forma, deixámos de reagir com espanto?

Obras como The Alchemist Apprentice, de Jeremy Dronenfield, de nos conta a história de um livro que nunca existiu (e que acaba por ser o próprio), ou The Eyre Affair, de Jasper Fforde, no qual a literatura substitui o futebol na capacidade de apaixonar multidões (as Forças Especiais têm uma Divisão Literária).

A beleza estilistica de autores como Steven Erikson (Days Between Stations). O peculiar Smilla's Sense of Snow. De certa forma, A Tradução, de Pablo de Santis. Todos diferentes no conteúdo, todos idênticos na subtileza do discurso. Herdeiros da tradição de Borges e Bioy Casares, mas assumidamente tecnófilos, habitante de espaços urbanos.

Infelizmente, Debaixo da Pele, o primeiro livro de Michael Faber, trazido à luz pela Difel, podendo enquadrar-se nesta classe, é um péssimo exemplo.

Imaginem-se no norte de Inglaterra; imaginem agora uma mulher, nos seus vinte? trinta?, que passa os dias a conduzir um pequeno veículo de terra em terra, e cujo prazer do dia-a-dia é de recolher penduras – que sejam homens e jovens. Quando se encontra com um pendura novo, mede-o de alto a baixo com um propósito em mente, e estando satisfeita, exibe o peito semi-descoberto para lhe chamar a atenção e fazê-lo falar. Estará o autor a conduzir-nos numa farsa pós-moderna de sexo fácil com juízos de valor sobre as famílias actuais à mistura?

Pois sim! Sem querer revelar o enredo, apenas adianto que o propósito está longe de ser aquele em particular, que a rapariga não age sozinha, e que ao longo do livro vai encontrar-se com muitos outros penduras.

Efeito surpresa? Digamos que apenas o poderá ser para alguém que nunca tenha assistido a um episódio da Quinta Dimensão, ou que nunca tenha visto Hitchcock, ou que não tenha simplesmente ligado a televisão nos últimos trinta anos; as audiências tornaram-se demasiado sofisticadas para este tipo de enredos.

A partir do choque da revelação, o livro abranda sobremaneira, e revelações posteriores são feitas em câmara lenta, demorando capítulos até que se perceba o destino de todos os penduras e a finalidade da protagonista.

O truque é conferir uma depressão muito pós-moderna e muito urbano-derrotista a uma personagem que, percebemos logo, pouco ou nada tem em comum connosco. E o livro deleita-se na exploração desta depressão, que tem tanto em comum com as crises de meia-idade (humanas): a repugnância pela presente figura do corpo, a saudade de uma época de beleza e juventude, o eterno repetir de uma rotina sem propósito. Reflexo involuntário e pouco subtil das circunstâncias do autor?

Seja como for, até o enredo foi vítima de uma ausência de raciocínio lógico: o fundamento de todo o livro está em a protagonista preocupar-se constantemente com a possibilidade de recolher penduras que venham a ser procurados pela polícia - logo, só escolhe os solitários, os solteiros, os divorciados sem filhos. Sabendo-se que uma terra como a Escócia, em que os cidadãos se encontram identificados e e vigiados por uma força policial, porque razão escolheu aquela raça actuar ali e daquela forma é algo que uma mente minimamente iluminada não consegue perceber - pois se até os humanos, quando querem fazer algo de ilegal, actuam nos países do Hemisfério Sul, serão os menos que humanos, menos que racionais?...

A verdade final, mas que só se apresenta, como uma revelação funesta, aos leitores mais atentos, é que se perderam horas a ler nada mais do que um argumento de filme de classe Z, daqueles que o Roger Corman poderia fazer há muitas décadas (embora sem capacidade de assumir o estatuto de culto).

Observação demasiado agressiva? Creio que não - o estilo é competente, a tradução é cuidada. Mas são apenas outras capas, das que enganam. A premissa base e toda a lógica subsequente do enredo é de uma idiotice completa; não há termo mais literário para descrever as duzentas páginas de completo vazio muito profissionalmente coberto de frases elegantes e uma estrutura clássica de narrativa.

São livros como este que dão mau nome à ficção científica.

Se ao menos o autor não se levasse tanto a sério... Se tivesse encarado a narrativa de forma mais cínica ou sarcástica... Não passaríamos pela angústia de observar uma performance essencialmente ridícula - uma sensação igual à provocada pelas antigas séries de TV em reposição, em que os alienígenas se apresentam nitidamente como criancas vestidas com fatos de borracha e maquilhagem mal aplicada...

Ou como D. Quixote se deve ter sentido quando percebeu que os monstros eram meros e inofensivos moinhos de vento...

A obra seminal na forma como uma inteligencia extra-terrestre se aproveita de uma terrestre na forma mais física e cozinhada possível continua a ser o fabuloso conto Como Servir o Homem, de Damon Knight, que Serling adaptou para a Quinta Dimensão.

O titulo (de sentido ambíguo) diz tudo...

(crítica publicada pela primeira vez no DNA, algures em 2001)