Na Trilha de Möbius

Notícias e reflexões sobre ficção científica, fantástico e literaturas alternativas.

terça-feira, julho 15, 2003

Dick, FC e muito mais

Jorge P. Pires deixou nos comentários ao meu post acerca do artigo dele no Mil Folhas um longo artigo sobre aquilo que entende ser, e deixar de ser, ficção científica e sobre a natureza da obra de Philip K. Dick. Porque tem uma série de ideias boas para reflexão e discussão, porque é um texto suficientemente bom para enriquecer este blog, e porque pretendo responder-lhe de um modo visível em breve, tomei a liberdade de transferir esse texto para o blog propriamente dito. Ele aqui está:

Caríssimos,

Fico grato pela glosa ao meu recente artigo no «Mil Folhas» e pela chamada de atenção que tiveram o bom gosto de enviar por correio electrónico.
Alguns reparos, porém:
1) Proclamar que «a ficção científica começa a ser encarada com algum respeito em Portugal» parece-me um relativo dislate, porventura atribuível à vossa inflamada paixão por este género literário. Sucede, de facto, que a «ficção científica» já foi bastante mais popular entre nós do que o é hoje(à semelhança da chamada «literatura policial» e, enfim, da literatura em geral). Mas, afinal, o referido artigo tratava de REEDIÇÕES (não era?). E nele se dizia até que aquelas obras haviam sido publicadas por cá há já vinte anos...;

2) Ter a pretensão de que tudo está sempre a começar de novo torna-se num péssimo princípio quando é aplicado de forma indiscriminada - significa, entre outras coisas, que nada se conserva (deixando de importar a Memória), mas também que nada se consegue desenvolver o bastante (e, assim sendo, qual é o interesse do Futuro?);

3)O problema de se usar a esmo uma expressão como «ficção científica» está em não se definir o que deve nela existir de «científico». Frequentemente, existe muito pouco. Nos livros de Dick, existe quase nada. Não vejo como é que se pode inverter essa afirmação com frases do género «toda a ficção científica é um imenso comentário multifacetado à nossa espécie e à nossa sociedade» - trata-se de uma daquelas tautologias que servem em qualquer cicunstância: e assim, onde se lê «ficção científica» poderia ler-se, por exemplo, «televisão», «rádio», «imprensa», «actividade circense», «arte de palco», etc. A frase continuaria sempre a ser verdadeira. Mas também continuaria sempre a não responder ao essencial: o que há ali de «científico»?;

4) ALGUMAS obras de «ficção científica» têm um cariz verdadeiramente «científico» (estou a lembrar-me, por exemplo, de «The Difference Engine», de Bruce Sterling, que é também uma obra sobre História da Ciência; ou do «Contacto», e Carl Sagan - o livro, não o filme). Outras não o têm. Não vêm daí grande mal ao mundo: tal como na música, a diferença essencial passa pela distinção entre a Boa e a Má Literatura, e isso independentemente dos géneros;

5)Quem pretender explorar o modo como os seres humanos se confrontam com o desconhecido tem ao seu dispôr muitos outros meios, inclusivamente literários, de o fazer. Para começar, poderia sugerir-vos a «Mensagem», de Fernando Pessoa, o «Siddartha», de Hermann Hesse, ou mesmo as «Confissões» de Santo Agostinho...;

6) Hmmm... Mas isso talvez não tivesse tanta piada, não é? É que a causa da popularidade da «ficção científica» não será exactamente a sua «cientificidade», mas antes o modo como este género nos propõe cenários de «tecno-fantasia», e nos adianta alguns dos futuros possíveis para a nossa gloriosa Sociedade Industrial. É claro que uns serão melhores que outros. Mas isso passa, até à próxima proposta, ou até à próxima produção cinematográfica;

7) Digo isto para chegar ao inevitável: enquanto género, a «ficção científica» é um fenómeno mais derivado da indústria do que propriamente da arte literária. O próprio Philip K. Dick tornou-se conhecido como cultor do género devido às circunstâncias: é que, nos anos 50, as editoras nem queriam pegar nas outras coisas que ele escrevia (histórias de adolescentes, histórias de surfistas). A única maneira que o homem encontrou para ganhar alguns cobres e viver da escrita foi a de começara aviar contos para as revistas. Mesmo assim, se se derem ao trabaho de consultar as suas «Collected Short Stories»(cinco volumes, publicados pela Grafton no início dos anos 90) e de conferir as datas de registo dos contos com as datas em que foram publicados, hão-de ver que o Dick andou uns bons dois anos a registar textos antes que lhe publicassem o que quer que fosse. Os produtos da Indústria vão-se, e são substituídos por outros produtos. A Arte, no entanto, é o que fica. Foi também isso que aconteceu no caso deste autor;

8) Felizmente, não foi o que sucedeu a muitos outros escribas, que lá terão prosseguido a sua imparável descida até ao caixote do lixo da História;

9) E é por isso que admiro a vossa paixão, mas não posso partilhar dela. É que, tanto nas Artes como nas Espécies - incluindo a Humana - não existem géneros que sejam melhores do que os outros, ou que sozinhos detenham todas as verdades profundas.

Saudações do
JPP