Ao Redor do Centro
(Luís Filipe Silva)
A «Hard SF» é emblemática da dialética que parece conotar toda a ficção científica, no sentido em que resume os argumentos da discussão que contrapõe qualidade literária ao interesse temático. Por qualidade literária, falamos em domínio da língua e dos mecanismos do estilo (definir «estilos» é por si só uma outra discussão, que um dia poderemos ter neste espaço, mas por enquanto remeto-vos para The Life of a Style), de certa forma distanciados de uma exposição descritiva de inventário sequencial de situações e momentos; por interesse temático, falamos daquilo que aproxima o leitor de FC de um texto: a necessidade de descoberta, a entrada num mundo novo e inexplorado, mais ou menos sujeito às leis científicas tais como são conhecidas no momento da leitura.
Como dizia, a «Hard SF» é emblemática desta discussão, mas não porque encompasse os dois lados da questão: é mais fácil encontrar histórias de muito interesse temático e baixa ou vulgar qualidade literária que o inverso. Normalmente, ao inverso nem se chama «Hard SF». Neste sentido, o sub-género, ou movimento, é mais agressivo e elitista na admissão de participantes que toda a restante discussão literária sobre a natureza da FC. Não é de admirar, então, que os excluídos se tenham afastado para outras terras, levando no entanto, consigo, nas malas, a definição, expropriada, da FC, da sua FC, da sua ficção especulativa genérica, mítica. Mas não é a mesma discussão que a da «Hard SF».
Por outro lado, há uma vertente socio-dogmática na «Hard SF», a de que o universo é coerente, lógico, pode ser domado, pode ser compreendido pela razão, mesmo que nem sempre manipulado. O sonho húmido do homem ocidental, o homem branco, dominador, industrial, americano dos anos 40, 50. Neste território, não entravam fracotes, dinamizadores sociais nem os apoiantes das soft sciences. A revolução da New Wave dos anos 60, foi, se não literária, pelo menos ideológica, de esquerda contra o despotismo conservador. Ballard, afinal, conhece muito bem a sua ciência, e mesmo Moorcock a aplica nas viagens de Jerry Cornelius - a atitude é que é diferente. O texto serve a essência do homem, não a sua tecnologia. O saber é mais uma dimensão da personalidade, não um activo que se valoriza e vende nas bolsas.
«The Cold Equations» viria de certa forma esfriar o argumento (mesmo tendo sido escrita e publicada em 1954) - demonstra que o universo é de facto coerente e egoísta, pouco interessado em dialéticas políticas, e que a relação combustível-peso imutável, quer se tenha Freedman ou Marx na mesa-de-cabeceira. (disponível online a versão para televisão)
Ante tantas pressões e contra-correntes, não é de admirar que escritores e modas literárias tenham pendido a favor e contra o sub-género. Nunca tendo desaparecido por completo, foi preterida, primeiro, pela New Wave, depois pela fantasia científica, depois pelo ciberpunk. Ou melhor, a definição de outros movimentos e sub-géneros é que forçaram à sua definição e delimitação, pois no início tudo era ficção científica, apenas com um sabor mais Campbell ou mais Gold...
Actualmente? Actualmente, autores como Adam Roberts, Alastair Reynolds, Greg Egan, Greg Bear, Gregory Benford, Stephen Baxter, entre outros, procuram, com mais ou menos intensidade, uma fusão dos pólos opostos, e criar uma «Hard SF» que não traindo a especulação e dureza científica, consiga ser poética e interessante ao nível do estilo.
Os sinais de alerta não vieram de dentro, mas de fora: quem chamou a atenção para a forma foi a New Wave, quem criticou a passividade especulativa dos anos 70 foi Bruce Sterling e a sua Cheap Truth: obrigou os autores a pensar no futuro, pensar mais além, nas consequências, e depois escrever o livro como se tivesse sido escrito de facto na sua própria época e espaço. Por vezes, há resultados bizarros...
Neste sentido, Michael Swanwick não é considerado um autor puro de «Hard SF», pois o seu âmbito de acção é mais lato - como muitos outros, no entanto, presta bastante atenção ao rigor da especulação científica, e se não é como tal classificado, talvez se deva à sua veia irónica, ou à sua capacidade e preocupação com a caracterização dos personagens, mais do que com a definição rigorosa do método científico...
Talvez numa atitude de rebelia contra essa sensação, apresenta-nos em «Slow Life» uma abordagem cuidadosa, rigorosa, muito na tradição da dita «Hard SF», e que é também lírica e divertida.
Leiam este início, fabuloso:
The raindrop began forming ninety kilometers above the surface of Titan. It started with an infinitesimal speck of tholin, adrift in the cold nitrogen atmosphere. Dianoacetylene condensed on the seed nucleus, molecule by molecule, until it was one shard of ice in a cloud of billions.
Now the journey could begin.
It took almost a year for the shard of ice in question to precipitate downward twenty-five kilometers, where the temperature dropped low enough that ethane began to condense on it. But when it did, growth was rapid.
Down it drifted.
At forty kilometers, it was for a time caught up in an ethane cloud. There it continued to grow. Occasionally it collided with another droplet and doubled in size. Finally it was too large to be held effortlessly aloft by the gentle stratospheric winds.
It fell.
Falling, it swept up methane and quickly grew large enough to achieve a terminal velocity of almost two meters per second.
At twenty-seven kilometers, it passed through a dense layer of methane clouds. It acquired more methane, and continued its downward flight.
As the air thickened, its velocity slowed and it began to lose some of its substance to evaporation. At two and a half kilometers, when it emerged from the last patchy clouds, it was losing mass so rapidly it could not normally be expected to reach the ground.
It was, however, falling toward the equatorial highlands, where mountains of ice rose a towering five hundred meters into the atmosphere. At two meters and a lazy new terminal velocity of one meter per second, it was only a breath away from hitting the surface.
Two hands swooped an open plastic collecting bag upward, and snared the raindrop.
"Gotcha!" Lizzie O’Brien cried gleefully
São passagens como esta que transmitem o que se discutia em outros posts deste blog, o sense-of-wonder. A sensação de se estar onde as regras são diferentes e as cores trocadas. Como num sonho mecânico, matemático, perfeito.
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