Na Trilha de Möbius

Notícias e reflexões sobre ficção científica, fantástico e literaturas alternativas.

quinta-feira, julho 24, 2003

Antes por Defeito que por Excesso...

 

(Luís Filipe Silva)

(Nota de advertência: as palavras seguintes devem ser entendidas principalmente - embora não exclusivamente - como desabafo, e em nada tencionam desmerecer a validade da discussão e a inteligência dos argumentos apresentados pelos meus caros colegas de blog - mas após alguns anos a sustentar esta polémica, sinto que não se avançou nada na concretização do insólito. Também se classifica de forma redutora e simplista classes culturais estereotipadas. Ah, e são usados  palavrões desnecessários)

 

Correm minhas lágrimas, disse o polícia, pois não havia maneira que deixassem o miúdo em paz, e ele era apenas um. Quando conseguia afastar um dos bandos do pobre coitado que se torcia em dores no chão, outro grupo aproximava-se pelas costas e começavam a pontapeá-lo e a esmurrá-lo. Pareciam animais com sede de sangue. Os intelectuais de esquerda com os cachecois e os óculos da Multiópticas equlibrados delicadamente em narizes de pele fina que nunca haviam cheirado nada mais agreste que o pó dos livros das universidades citadinas, e as respectivas mãos não haviam sentido a dureza da enxada proletária; os conservadores, de cabelo aparado, pólos Lacoste sobre os ombros e Levi's de última moda, tão fiéis e convictos do grande jogo da Economia como acólitos de coro, novinhos e virginais, ante o mestre; os académicos, trajando calças de bombazina e camisolas de cores berrantes, alguns de ténis, outros de barba mal aparada, de acordo com o desleixo meticuloso da aparência a que devem obedecer todos aqueles cuja função é (supostamente) pensar (ou a sociedade paga-lhes com esse fim); os críticos, alguns frustrados, outros simplesmente avessos a novidades, de vários formatos e feitios, dependendo se escrevem para blogs ou aparecem na televisão; autores, também, uma seita estranha, a mais diversicada e agressiva de todas, mais garganta que conhecimento e arte; editores, atirando com relatórios e listas telefónicas contra o pobre miúdo, talvez os menos interessados de todos; e depois o resto, ocasional: leitores, adventistas, separatistas, terroristas, não havia ninguém que não lhe quisesse bater.

«És uma merda, ficção científica». Pontapé nas costelas.

«Oblívio da realidade, escapismo das classes». Pisadela nos dedos.

«Abordagem redutora e fútil do texto literário, previlegiando o espaço exterior ao espaço interior, empobrecendo o tema e fugindo por completo à tradição humanista». Murro nos queixos.

«Mais vale o tema que a forma». Cotovelada na barriga.

«Mais forma e menos tema!». Cotovelada na nuca.

«Falta-te ciência a sério». Murro no ouvido.

«Falta-te saber como se faz ficção». Pontapé na boca.

«Já morreste, porra, porque é que ainda te mexes?». Joelhada no peito.

«FC é tudo o que se vende com esta designação». Pontapé violento nos tomates. O miúdo berra de dor.

O polícia não tem mãos a medir. Corre de um lado para o outro. Tem pouca ajuda, pois quem está a favor preocupa-se mais em andar à bulha com os outros grupos que pegar no rapaz, tirá-lo do meio da multidão, levá-lo para casa, curá-lo. O polícia bem gostava de fazer isso, mas afinal não passa de uma personagem inventada, e o autor morreu há muito.

Ele bem gostava de dizer o que pensa.

A Ficção Científica é o que é, e estará enquanto aqui estiver. Como qualquer ideia, existe por consenso difuso de um grupo de praticantes, e um dia vai desaparecer. Quanto os praticantes, ou a prática, cessar.

Mas a resposta está longe de ser satisfatória, pois não conduz ao argumento, precisa de fé, e a fé não admite discussão. Por isso a demagogia é tão mais desportiva que a prática. A fé assenta na manifestação.

Pois a fé diz: a ficção científica é isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e isto, e até isto.

Apenas uma parte do grande todo. De todos os milagres. De um enorme texto multidimensional de que estes são apenas meras pálidas derivações.

Cada pontapé torna o miudo mais fraco. Cada palavra gasta a definir o indefinível afasta-o. Nem todos os mistérios devem ser desvendados. A FC, apesar do que se pense, não sobrevive perante o método científico. O miúdo fugiria, mas está preso no cercado.

O polícia vai continuar a repelir os atacantes, mas eles serão sempre mais. Um dia o miudo não vai aguentar um pontapé fatal. E todos ficaremos mais pobres.