(Luís Filipe Silva)
Há cerca de um ano fui entrevistado por uma jornalista francesa, que me colocou uma série de perguntas por email sobre o estado da FC portuguesa. O objectivo era fazer o proverbial artigo, cujo destino final não me foi relevado, ou sequer se teve progresso. Ficou um conjunto de respostas longas, que aqui principiarei a reproduzir para vosso conhecimento. Avisa-se que é em tom conversacional, e não académico, não vá algum leitor sofrer de vertigens.
A diferença na FC [Ficção Científica] portuguesa contemporânea não deverá ser medida tanto face à FC que se publica fora de Portugal (e aqui afirmo Portugal em desfavor de "língua portuguesa", porque, mau-grado a existência de um movimento literário de FC no Brasil, com o qual tem havido algum intercâmbio, nomeadamente através do Prémio Caminho, do Atlântico Tem Duas Margens, e da publicação de autores portugueses nas fanzines brasileiras, não há na verdade uma FC em língua portuguesa, se bem que possa haver uma FC portuguesa e uma brasileira. A falta de intercâmbio não é necessariamente problema da FC, se não um problema que de facto existe na literatura dos dois países, a todos os níveis) - deverá ser medida, dizia eu, contra si mesma, face a uma evolução no tempo, lenta mas marcante.
Segundo a Enciclopédie de l'Utopie et de la Science Fiction, de Pierre Versins, a necessidade de escrever FC em português nasce nos anos 40/50, talvez impulsionada pelas transformações vindas de fora, pelas descobertas científicas, e sem dúvida pelo surgimento de uma colecção regular, a Argonauta, precisamente em 1957. Se quiser compreender o caminho da mentalidade da FC portuguesa, deverá conhecer a evolução das obras disponíveis ao público na mesma língua. É de facto com esta colecção, com o ritmo de publicação regular, de 1 livro por mês, que se vai ganhar um mercado, abrir o horizonte a leitores que nem tinham acesso às obras estrangeiras nem saberiam lê-las nas referidas línguas.
Mesmo assim, nos anos 40, é publicada em Angola uma obra (cujo autor e título não retenho na memória) que apresenta um mundo em que os países europeus são matriarcados, e Portugal é, por sinal, um patriarcado. Em que as maravilhas tecnológicas e arquitecturais de Lisboa se misturam com um presente saudosista e poético. A fantasia dá lugar ao sonho, a um nacionalismo exacerbado, e não é por acaso que os dirigentes de Portugal se casam com as líderes de França ou Inglaterra, e o livro acaba com uma ou duas mensagens humanistas, enquanto se contempla o horizonte do mar...
Vamos voltar a encontrar este nacionalismo romântico em tempos recentes, O Enigma de Titã, de António Bettencourt Viana, Editora Nova Arrancada, Lisboa, 1999. Neste livro, o autor leva-nos a bordo de uma nave com destino a Saturno, em missão exploratória, e com uma equipa mista de cientistas portugueses e espanhóis. Depois de muitas aventuras, a maioria das quais de natureza inter-pessoal, o livro acaba em matrimónio para os principais personagens.
De facto, se há um factor demarcante na FC portuguesa, é a sua utilização como veículo de questionar, satirizar, ou enaltecer, a posição do nosso país no mundo. Recordo-me da Euronovela, do Vale de Almeida; recordo-me de A Cidade da Luz, do José Murta Lourenço; recordo-me até certa medida, de Medo Em Seis Andamentos, de Valério Romão; recordo-me essencialmente do recente Quatro Andamentos, do Luís Sequeira. Em quase todas estas obras, em particular naquelas que são nitidamente primeiras obras ou de escritores ainda pouco maduros na escrita, o peso da História acaba por esmagar o da Estória, como se as alterações do território nacional, a sua nova geografia de gentes e lugares tivesse necessariamente predomínio sobre o território interior, ou não conseguisse viver com ele de forma harmoniosa.
A maior parte destes livros encontram-se em edições de autor ou de editoras de pequena dimensão - são extremamente difíceis de encontrar. O que nos leva a outro factor determinante na evolução da FC portuguesa: o do espaço de publicação.
Autores de mainstream sempre cometeram o pecado de entrar um ou dois pés nas águas do fantástico: Romeu de Melo, Natália Correia, José Saramago. Não assumidamente como tal (com excepção do Romeu), e quase sempre no início das respectivas carreiras literárias. As editoras não contribuiram para o crescimento deste espaço: a própria edição de FC traduzida, àparte o fenómeno extraordinário da Argonauta (e mesmo esta tem sofrido abalos de qualidade bastante graves, em particular nos últimos 15 anos), foi sempre errática, e apesar de colecções que ainda duraram algum tempo, como a DH Ciência e a Panorama, foi só nos anos 80, com o surgimento de outra colecção regular, da Europa-América, com traduções mais bem cuidadas (nesses tempos, uma vez que rapidamente a qualidade começou a decrescer), que algumas obras que se iam lançando lá fora foram surgindo por cá. Essas obras eram mais modernas, mais recentes, mais ao ritmo dos tempos. O mercado devia prometer, pois entre 1985 e 1987 nasceram e morreram várias colecções, em particular a colecção Contacto, da Gradiva, liderada pelo João Barreiros.
O surgimento da FC portuguesa, moderna e actual, com maior qualidade e assumida como tal (nem que fosse pelo facto de ser publicada sob a égide de uma colecção de ficção científica) terá lugar na Editorial Caminho, que, ao abrir um prémio, em 1985, assumidamente de fantástico, permitiu o reconhecimento do género. O lançamento de Os Caminhos Nunca Acabam, do João Aniceto, e A Vocação do Círculo, do Daniel Tércio, inauguram, de certa forma, o outro lado da FC portuguesa, aquele que não se preocupa com questões de nacionalismo. Se de facto há portugueses nas histórias destes autores, e nas dos que se lhes seguiram, não são como representantes de uma nação, mas como indivíduos, participantes de Estórias.
O prémio daria origem a uma colecção, a colecção à participação (errática) de um conjunto de nomes que por ali foram surgindo (eu inclusivé). O apogeu aconteceu em 1993: todo o ano editorial da colecção da Caminho - 6 volumes - publicaria apenas ficção científica portuguesa, feita por portugueses. Foi notícia de jornal, foi acontecimento na Feira do Livro de Lisboa, foi objecto de reportagem e análise em alguns periódicos nacionais.
Que coesão posso encontrar nas obras apresentadas? Por sinal, as que são mais fáceis de classificar são aquelas nas quais Portugal é o protagonista - são demarcadamente de análise histórica, enaltecentes ou românticas. Recentemente, têm surgido algumas mais cínicas e frias, feitas por autores jovens cujas influências são diferentes da geração anterior (o que se percebe pela capacidade de enquadrar Portugal numa perspectiva mais internacional). Uma das obras mais cínicas de recente estirpe será Morte Certa, de Carlos Águas Amaral, que invoca o ressurgimento do fascismo num Portugal daqui a trinta anos...
As restantes são invariavelmente mais complexas e difíceis de enquadrar. Nascem de uma não-tradição: são obras singulares e isoladas (falo de o Demónio de Maxwell e a Pedra de Lúcifer, do Daniel Tércio; falo da sequência de romances e contos do Aniceto; falo da minha própria GalxMente; falo do Terrarium, que fiz com o João Barreiros). Ou melhor, a tradição existe, mas não é portuguesa, e não é coerente, porque se baseia nas leituras e influências temáticas de cada autor - todas elas divergentes. Este facto já tinha sido apontado antes, e acaba por ser verdade. Por estranho que pareça, os autores portugueses não se influenciam entre si. São, isso sim, extremamente permeáveis ao que vem de fora.
E o que vem de fora são obras anglo-saxónicas, quase exclusivamente. O mal não é apenas nosso, é de toda a Europa. A falta de união linguística europeia, aliada à tremenda capacidade produtiva dos EUA, levou a que o imaginário secular de França e Inglaterra fossem dominados pelas preocupações e abordagens socio-científicas dos autores americanos (há um artigo brilhante do britânico Brian Stableford a analisar este facto). Há países que entretanto recuperaram, ajudados pelo estatuto hermético da língua: falo de Espanha, França, Itália, Alemanha. Nestes países, em que o contacto com a cultura estrangeira surge traduzido ou adaptado para a cultura nacional com publicações abundantes e recentes, torna-se mais fácil a leitura e desenvolvimento de temáticas e discursos - pois a FC acaba por ser um discurso à escala mundial sobre a situação do tempo presente e do nosso futuro próximo. Espanha tem encontrado um surgimento massivo de fc nacional, França há muito que o tem, e Itália, de acordo com Valerio Evangelisti na introdução à antologia Fragments d'un mirroir brise, está a despertar de um sono antigo (uma das causas que aponta é o da bota fascista de Mussolini ter impedido o avanço cultural do país - o que de certa forma explica também a nossa situação); Alemanha parece ir mais atrasada, com excepção da Fantasia, em particular a Fantasia Heróica, de cujos mitos a sua cultura é abundante.
Aliás, note-se, se não fosse a França a traduzir obras de espanhóis, italianos, polacos, alemães e russos, a unir, digamos, o tecido da FC europeia numa única língua, menos ainda se conheceria e estaria difundido, pois a FC anglo-saxónica, mesmo de natureza britânica, rejeita tudo o que não seja de "marca nacional"...
O problema da FC portuguesa é precisamente o carácter errático: as colecções são de má qualidade, e não percebem, e não enquadram, o que publicam. Sem informação, não há crescimento sustentado. Não tivemos movimentos literários dignos de nome, não tivemos outros movimentos a contestar os primeiros. A arte é um discurso feito de manifestações, e em Portugal, em FC (e na literatura de mainstream, mas isso é outra discussão), o discurso não existe, está quebrado em váriadas e pequeninas conversas.
Daí que livros como Estórias de Clausura, de José Leonardo, ou o Metacarne, do Manuel Pais, embora publicadas com a chancela de uma editora de renome, a Oficina do Livro, cometam os mesmos erros de estilo, interpretação e facilitação de enredo que outros autores já tinham provado não serem deficiências da FC portuguesa. Livros como estes, que surgem do nada, sem conhecimento do que foi anteriormente feito, contribuem para o afastamento do público, que atribui a má qualidade a um pseudo-facto: FC portuguesa é uma aberração conceptual.
A afirmação pode ser um pouco exagerada, concedo. Mas na minha perspectiva pessoal, estamos longe do que se conseguiu na década passada, em particular na Caminho, naquilo a que já foi chamado a última tertúlia portuguesa do século XX.
Estamos longe, e não há sinais de conseguirmos retornar à costa nos próximos anos.